Perna Cabeluda

PERNA CABELUDA

Relatório

Uma perna fantasma, sem corpo, que assombra as noites do Recife e persegue os notívagos. Esta é a Perna Cabeluda; lenda urbana que passa a circundar a capital pernambucana em meados dos anos 1970 e que, hoje, já é ícone da cultura popular no Brasil inteiro.

Guaipuan Vieira publicou, no fim dos anos 1990, o folheto de cordel “A Perna Cabeluda – Prenúncios da Besta-Fera”. Os versos dão algumas características que servem de ponto de partida para a nossa discussão. O monstro seria mais alto que um homem adulto, contando dois metros de altura. Possui um olho ciclópico bem na dobra do joelho, que fica aceso feito tição em brasa. Logo abaixo, fica seu nariz, uma boca com presas pontiagudas, língua ferina e barbicha de bode. Cada uma de suas unhas é envergada, e, quando ela salta, faz um barulho medonho como o rangido dos dentes. No calcanhar, como se não bastasse, carrega um esporão, feito os de galo, e um chifre no meio da canela.

Parece ser, certamente, uma visão digna das hostes do inferno. No entanto, muito pouco disso está presente nos relatos populares. O que mais se falava, na época, era da aparição de uma perna, coberta de pelos negros e ensebados. Suas unhas eram grandes e sujas, mas sem mais detalhes macabros. A Perna perambulava pela cidade, atacando pessoas com rasteiras e pontapés.

Mas como teria surgido essa crença? Ao que tudo indica, esta é uma lenda midiática; isto é, uma criação dos meios de comunicação da época que se folclorizou, perdendo o lastro de autoria, e foi assumida pelo povo.

Existem duas pessoas que disputam, em nível de discurso, a “paternidade” da Perna. O primeiro é o jornalista Jota Ferreira, que trabalhava no programa de Geraldo Freire na Rádio Repórter. O programa ia ao ar às 4h e permanecia até as 8h. De tom popular e policialesco, fazia um plantão no Hospital da Restauração, para entrevistar os alcoolizados que por ali passavam e fazer render as horas no microfone.

Certa vez, sem nada para noticiar, Jota Ferreira conta que teria inventado, de improviso, a história de que um homem havia baixado no hospital vítima de “Perna Cabeluda”. Dias depois, durante seu plantão, uma mulher chegou também na enfermaria alegando ser vítima da assombração. A partir daí, a história teria se alastrado.

Outro possível pai da lenda urbana é o jornalista e escritor Raimundo Carrero, que publicou, em 1º de fevereiro de 1976, o conto “Perna Cabeluda chega em Olinda”, na coluna Romance Policial, no Diário de Pernambuco. Para o autor, o público não teria entendido a piada e tomado a narrativa como verdadeira. Teria sido essa a certidão de nascimento da visagem.

Quanto ao rádio, não temos registro de quando (ou se) a matéria de Jota Ferreira foi ao ar. No entanto, a assertiva de Carrero não é bem correta. Dois meses antes de seu texto, ainda em 10 de dezembro de 1975, o mesmo Diário de Pernambuco publicou uma notícia: “Perna fantasma surge em moradia de Tiúma”. Acontece que, nas voltas da usina de Tiúma, em São Lourenço da Mata – zona metropolitana do Recife –, um jovem relata ter visto uma perna espiritual nas sombras da parede de sua casa.

Ao longo daquela semana, a notícia se alastrou. E é no dia seguinte, 11 de dezembro, que uma nova matéria dá a característica derradeira: o fantasma aparecia na forma de uma perna cabeluda. Vários outros moradores afirmaram também terem visto o monstro, que ia se revelando pouco a pouco: primeiro, o pé e, depois, o restante.

O texto descreve a visagem como uma perna de cerca de um metro e meio, que se pendurava no telhado e era capaz de assumir a forma de outros animais: morcegos, borboletas etc. Quem debochava da história recebia um golpe invisível como pagamento. Assustados, os entrevistados pediam pela intercessão do padre (que se recusou) e de médiuns espíritas.

A última menção ao caso é de 13 de dezembro daquele ano. O texto diz que o fotógrafo José Tadeu presenciou o fenômeno em que a perna surgiu na parede, batendo várias fotos, mas, quando as revelou, não havia nada. Reforça, ainda, que já havia uma comoção sobre o caso, com pessoas indo até a casa para ver o espírito sem corpo.

Pois foi justamente este o caso que José Soares registra em “A Perna Cabeluda de Tiúma e São Lourenço”. Cordelista alagoano, José assinava como o “poeta-repórter” e especializou-se em transformar em folheto de cordel as notícias que lia nos jornais. Foi o que fez com seus maiores sucessos, como “A morte de bispo de Garanhuns, Dom Expedito Lopes”, que vendeu 108 mil exemplares só em Pernambuco, e a “Renúncia de Jânio Quadros”, que vendeu 60 mil.

No texto dedicado à Perna, o poeta-repórter conta ter ouvido sobre a história no rádio e em um clichê de jornal. Não há uma data precisa sobre o lançamento da obra de José, mas, numa matéria publicada em 26 de janeiro de 1976, já se falava que havia um cordel publicado sobre o assunto.

O poeta ainda escreveu um outro cordel, “A Perna Cabeluda de Olinda”, lançado apenas três dias após a coluna de Raimundo Carrero. Isso mostra como José trabalhava sempre com assuntos quentes e com grande velocidade. Nele, menciona nominalmente o jornalista escritor: “Conforme disse Carrero lá no jornal de domingo, ela atacou uma turma que estava jogando bingo”. No cordel, o conto é tratado como um fato jornalístico, indistinto da matéria anterior.

Outra notícia interessante foi publicada em 5 de fevereiro de 1976. Nela, descobrimos que a Perna Cabeluda se tornou inspiração para um frevo-canção: “Se você não viu, venha ver! Não se iluda. Não tenha medo, não. Da perna cabeluda”. A inspiração, contam os artistas, foi o cordel de José Soares. A visagem entrou de vez para a cultura popular em 10 de fevereiro, inspirando a criação de uma troça-carnavalesca – uma espécie de bloquinho de foliões. A troça saiu até os anos 1980, arregimentando multidões.

Percebemos, com isso, que tão importante quanto a mídia de massa tradicional foi a literatura de cordel, que reverberou o acontecimento para as classes populares. E o que os textos falavam da perna? Vamos observar, no texto dos folhetos, quem eram as vítimas da visagem, sujeitos de levarem pernadas, “patadas” e pontapés.

Nos cordéis de José Soares, a perna persegue homem que dança de bermuda, gigolô e mulher buchuda. Sujeito falso e que perambula tarde da noite pelas ruas. José da Costa Leite, no cordel “O encontro da Velha debaixo da Cama com a Perna Cabeluda”, aponta que ela persegue sujeito desordeiro, mentiroso, arruaceiro. Moça que anda com umbigo de fora, homem de cabelo comprido, cabra que fala fino, mulher galheira e o próprio corno. Era uma forma de os escritores também apontarem toda fuga moral a ser castigada pela assombração.

Um documentário sobre a Perna Cabeluda foi produzido em 1996, por Gil Vicente, Marcelo Gomes, Beto Normal e João Jr. O filme, assim como muitos dos cordéis, não se furta de trocadilhos sexuais. No entanto, o grande destaque vai para um elemento trabalhado em poucos minutos de filme: a relação com a Ditadura Militar.

Quando as histórias sobre a Perna “viralizaram”, estávamos em pleno governo de Ernesto Geisel, o quarto presidente do governo ditatorial. Lastro disso vemos no depoimento do radialista Jota Ferreira, que conta que o chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas de Pernambuco, Demerval Barreto de Matos, ameaçava fechar o jornal caso se continuasse a falar de Perna Cabeluda.

Para Raimundo Carrero, no documentário, foi justamente o clima de opressão criado pelos militares que permitiu com que a história da Perna se comunicasse com mais força com a população. As pessoas puderam voltar a sonhar, a pensar no absurdo, em pleno estado de exceção. Tudo graças a uma perna fantasma sem corpo.

PERNA PRA QUE TE QUERO

Tipo: Desafio
Elemento: Labuta

"A Perna Cabeluda detesta quem vive na farra. Bote sebo nas canelas enquanto volta da boemia!"

Condição de Vitória:
Envie duas cartas do tipo Noite, de sua Mão ou do campo, para o Beleléu.

Efeito:
Esta carta não tem efeitos adicionais

Artista: Rafael Limaverde

Carta de Perna pra que te quero. Com ilustração mostrando uma gigantesca perna cabeluda perseguindo um homem assustado, ele está fugindo e derruba seu chapéu e uma garrafa de bebida. O cenário é um local seco com algumas pequenas plantas secas, à noite com uma lua cheia.

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Fontes

– CARRERO, Raimundo. Perna Cabeluda chega em Olinda. Coluna Romance Policial, Diário de Pernambuco. 01/02/1976.
– GOMES, Marcelo; JÚNIOR, João; NORMAL, Beto; VICENTE, Gil. A Perna Cabeluda Documentário. 1996.
Perna fantasma surge em moradia de Tiúma. Diário de Pernambuco. 10/12/1975.
“Perna fantasma” já é problema policial. Diário de Pernambuco. 11/12/1975.
– SOARES, José. A Perna Cabeluda de Tiúma e São Lourenço.
Tema musical é a “perna”. Diário de Pernambuco. 26/01/1976.