Acenda velas quem não sabe o resto
Da velha história que eu cortei ao meio
E, ao pé das velas, deixe fumo em rama
Para o Negrinho do Pastoreio
– “Era uma vez”, por Aparício Rillo e Mário Barbará
O Negrinho do Pastoreio é uma das visagens mais atravessadas pelo cristianismo de nossa cultura popular. A narrativa é do pampa gaúcho e normalmente se situa às voltas do século XIX. Ela fala de um menino negro, sem nome, que seria ou um jovem escravizado, ou um filho já liberto pela Lei do Ventre Livre, de 1871. Obrigado a pastorear durante longas noites a tropilha de cavalos do fazendeiro – e boicotado por quem deseja seu mal –, o menino é castigado e brutalmente morto, por capricho do dono das terras.
Abençoado por Nossa Senhora Aparecida, no entanto, o Negrinho volta dos mortos. Sua tarefa passa a ser a de levar aos outros a esperança e a misericórdia que lhe foram negadas em vida. Nessa missão, é acompanhado por um cavalo baio, ou seja, um animal com pelagem marrom-avermelhada e pontas pretas na crina, cauda e nas pernas, o qual era o favorito do estancieiro. Alguns dizem que, junto ao menino e seu baio, acompanha o som de uma tropilha de cavalos-fantasmas que anunciam sua passagem.
A narrativa ainda é bastante presente no Rio Grande do Sul, sendo especialmente viva em lugares como São Francisco de Paula, onde se encontra uma estátua do Negrinho feita por Vasco Prado, na década de 1960. Ao redor dela, a cera da vela dos fiéis se acumula há décadas – juntamente dos pedidos feitos para o menino. Dizem que, para que a visagem o ajude, é preciso oferecer uma vela, um pedaço de fumo ou fazer a ela uma oração. Ao Negrinho, sempre recorrem para encontrar coisas perdidas.
Existem registros escritos, no entanto, como os de Walter Spalding, que falam de uma técnica para obrigar o Negrinho do Pastoreio a fazer o desejado: cravar uma estaca no chão, para assim deixá-lo preso, e prometer libertá-lo somente se ele trouxer o que foi perdido. É uma medida extrema, a qual o autor reforça que só deve ser usada caso as anteriores não funcionem.
Em 1890, há também registros da lenda em países vizinhos, como a Argentina. Lá é Javier Freyre quem escreve a história “El negrito del pastoreo”. Nela, o menino pastoreava ovelhas, não cavalos, e acaba sendo crucificado sob um formigueiro, para que as formigas o devorem vivo. Isso realmente acontece e, ao fim, o menino morre e se torna um santo mártir. No relato, dizem que se recorre ao Negrito para impedir tempestades ou trazer a chuva.
Curioso perceber como sua presença na cultura gaúcha foi afetada diretamente pelos movimentos tradicionalistas, fazendo com que muitos tenham familiaridade com o Negrinho do Pastoreio sem, necessariamente, ter vivência com sua manifestação.
A versão mais famosa da lenda que se conhece hoje é o conto escrito em 1907, por João Simões Lopes Neto. Esta é uma criação artística do autor, inspirada pela tradição que já existia, pelo menos, desde o século passado. Embora folclore e literatura se afetem mutuamente, é importante lembrar: literatura fixa uma versão, enquanto a cultura popular aceita várias.
O primeiro registro escrito de Negrinho do Pastoreio, no entanto, data de mais de meio século antes. Em 1857, o cônsul português António Maria do Amaral Ribeiro publicou, em Lisboa, o artigo “O Criollo do Pastoreio”. O texto, repleto de deboche, descreve um momento em que a devoção ao Negrinho já estava estabelecida. Ri o autor da superstição deste “santo popular nunca visto” – um crivo que, talvez, nunca tenha aplicado aos seus próprios santos europeus. De qualquer forma, em seu relato, fala-se de que o costume era acender três velas para pedir as graças do menino: uma para cada tipo de gado.
Diversos registros escritos vieram posteriormente, até chegarmos à versão de Lopes Neto, que reforça ainda mais seus índices cristãos. É ele, por exemplo, quem estabelece Nossa Senhora como a madrinha do Negrinho e consolida a versão de que o menino ressuscitou ao terceiro dia, após ter sido deixado no formigueiro.
Versão de Lopes Neto
Em resumo, na versão do escritor, o Negrinho trabalhava para um estancieiro muito cruel. Certo dia, perdeu numa corrida de cavalos em que o fazendeiro havia apostado muito dinheiro. O fazendeiro deu-lhe uma surra de relho e impôs um castigo: deveria pastorear a tropilha de tordilhos negros durante trinta dias, sem voltar para casa. E mais: o cavalo baio, o favorito, não teria estaca para pastar. O Negrinho é quem serviria de estaca para ele, segurando o animal até enquanto dormisse.
O inevitável aconteceu. Enquanto o Negrinho dormia, os graxains (cachorros do mato) roeram a corda que ele segurava, e o cavalo baio fugiu, levando todos os outros. O Negrinho rogou à sua madrinha, Nossa Senhora Aparecida, que o ajudou a encontrar os cavalos. Porém, o filho do estancieiro, ansioso por ver o menino negro fracassar, expulsou os cavalos novamente e o denunciou ao pai.
Dessa vez, o castigo foi maior. Tão grande, que o menino não aguentou a surra e desfaleceu. Para completar sua crueldade, o fazendeiro mandou que o corpo, ainda vivo, fosse largado em um formigueiro, para que os insetos não deixassem sobrar nem os ossos do garoto.
Daquela noite em diante, no entanto, o homem passou a ser assombrado por pesadelos. Noite após noite, ele se via infinitamente caindo na boca do mesmo formigueiro. Ao terceiro dia, retornou ao local para garantir que o Negrinho estava mesmo morto, mas o que encontrou foi o oposto disso.
Logo à sua frente, estava o Negrinho, em pé, com a pele intacta. O garoto sacudiu as formigas de seu corpo e montou no cavalo baio, tendo sobre si as bênçãos de Nossa Senhora. Foi a vez do fazendeiro ajoelhar-se diante de quem um dia o serviu.
Como lembra o poeta
Jayme Caetano Braun, em uma canção em homenagem ao Negrinho, ao botar no formigueiro o corpo da criança, o estancieiro cravou fundo uma lança no próprio ser do rincão. Uma lança de vergonha. Que o comportamento racista do fazendeiro e de sua família nessa história nos ensine a repudiar todo reflexo desse tipo de atitude, tão frequente, mesmo nos dias de hoje.