LABATUT
Relatório
“Bahia, berço de compositores
Cultiva a cultura do Rui
Do Castro a inspiração
Maria Quitéria a coragem
Do Labatut a razão”
Torrão Tradicional, por Josias De Miranda (Noite Ilustrada, 1971).
O primeiro registro escrito em que se fala de um monstro com o nome Labatut foi feito pelo jornalista e escritor potiguar José Martins de Vasconcelos em 1918. O texto integra seu livro “Histórias do Sertão”, em que produz literatura regionalista inspirada em narrativas tradicionais, compilando textos escritos desde 1906.
Diz o autor que escutou sobre o Labatut pela primeira vez em 1874, durante sua meninice em Mossoró/RN. Labatut era o nome utilizado para assustar os meninos, descrito com todas as características para torná-lo horrível: era um bicho-homem enorme, cabeludo, com o corpo coberto de pelos tão duros que pareciam espinhos. Seus pés eram redondos e deixavam a marca de cascos quando passava. Tinha um único olho, feito ciclope, e presas compridas como as de um elefante.
Segundo os mais velhos, conta Vasconcelos, o Labatut mora no fim do mundo e toda noite percorre as cidades sertanejas para devorar a população e aplacar sua fome interminável. Tem especial apetite por meninos. É preciso silêncio total, pois quem canta, assobia ou mesmo ronca alto durante a noite se torna presa fácil para o monstro. Quase todos os demais registros são variações deste texto, a exceção de Frederico Edelweiss, na Bahia, que limita-se a falar que Labatut é um “negro velho que assombrava de dia”.
O nome do papão, sabe-se, é derivação do sobrenome de um personagem que marcou a história do Brasil império: o general de brigada Pierre Labatut, aportuguesado por estas terras como Pedro Labatut (1776 – 1849). Dizem os folcloristas que as ações truculentas e sanguinárias do militar/mercenário inspiraram no povo o temor que o converteu em monstro no imaginário brasileiro. As interpretações atribuem, inclusive, um espaço de atuação para a criatura: a Chapada do Apodi, na fronteira entre Ceará e Rio Grande do Norte.
Chama atenção a visão diametralmente oposta sobre o militar por parte das instituições. Labatut é tido como um herói da independência, figura que batiza inúmeras ruas e praças por todo o Brasil. Em Salvador/BA, seus restos mortais foram dispostos, inicialmente, na Igreja de São Bartolomeu do Pirajá – região conhecida pela maior vitória do general contra os portugueses. Depois, em 1914, foram migrados para o Panteão ao General Labatut, construído no estilo neoclássico. Após a morte do francês, uma romaria ao seu túmulo movimentava inúmeros fiéis, ao ponto em que apenas quatro anos depois, em 1853, o povo deu início a “Festa de Labatut” – celebrada até os dias de hoje.
Monstro ou herói, qual seria a imagem mais precisa para representar Labatut?
Descrito por vezes como um “aventureiro francês”, Pedro Labatut serviu na esquadra napoleônica, tendo atuado inclusive no ataque a Portugal que culminou na fuga da família real para o Brasil. Após 1814 vai para a América atuar nas guerras de libertação da América Espanhola, comandando inclusive o líder Simon Bolivar – de quem se tornou desafeto. Por ter servido a outro país sem a permissão do rei da França, Labatut perdeu direito a cidadania e só a recuperou num decreto real quinze anos depois.
No ano de 1819 chega ao Rio de Janeiro e, quando surge a oportunidade, oferece seus serviços a Dom Pedro I para ajudar na organização do exército brasileiro. Afinal, antes do Grito da Independência, em 1822, o oficialato era composto principalmente por lusitanos – que foram, então, convertidos em inimigos. É aqui que começa sua biografia em terras brasílicas: a campanha de libertação da Bahia, que estava sob o julgo português. Labatut recebeu do imperador a tarefa de organizar as tropas e tomar de volta a capital, Salvador.
Sobre seus feitos, é difícil distinguir fato e distorção. Revisionismos de sua história, como no registro do cronista cearense J. Brígido, apontam-no como um bom soldado, mas péssimo estrategista e cruel em seus atos. Ao mesmo tempo, ressalta que o homem teve sucesso em disciplinar as tropas desconexas da resistência brasileira. Seria realmente um ignaro capaz de tal feito? Se observamos comunicação da época do teatro de guerra, vemos grandes elogios ao trabalho de gerenciamento do militar.
Ainda assim, o hoje herói da independência não viu a vitória contra os portugueses em 02 de julho de 1823. Neste momento, estava preso. Destituído de poder por um amotinamento dos seus subordinados.
O que levou à revolta dos brasileiros contra quem os levava à vitória? As alegações são muitas. O que se diz é que havia, de início, um clima de estranhamento: um estrangeiro liderando brasileiros em uma luta contra estrangeiros. Labatut também, ao que se diz, era muito disciplinado e de trato ríspido, não angariando amigos ou aliados.
Com o aval do império, passou a dar ordens sem se reportar à Junta de governo da Bahia, o que aumentou a ciumeira. Por fim, incomodava aos militares brasileiros o fato de Labatut ter alistado pretos e pardos nas linhas do exército (incluindo escravizados que foram, posteriormente, alforriados). Este último ato fez espalhar o boato de que qualquer escravizado alistado seria liberto, o que não era de interesse das elites locais.
Isso quer dizer que Labatut era uma figura inclusiva e defensor da causa negra? Certamente que não. A sua decisão mais cruel durante a campanha na Bahia, digna da fama que hoje o folclore lhe rendeu, foi a ordem de execução de 50 quilombolas que haviam sido cooptados pelos portugueses. Mandou também espancar (ou chicotear, depende do relato) 20 mulheres que faziam parte da comunidade.
Com os ânimos acirrados, conversas cobre motim correram até os ouvidos do próprio general que mandou prender os líderes do golpe. Em especial Felisberto Gomes Caldeira. Foi a gota d’água. Os homens, fiéis a Felisberto, renderam Labatut e o prenderam sob acusações das mais variadas – em especial a da chacina dos quilombolas. Labatut defendeu-se dizendo que os homens, a serviço dos lusitanos, mataram, roubaram e boicotaram o exército brasileiro. Assumiu a autoria como uma decisão de guerra e foi, assim, inocentado.
A fama de sanguinário do general, no entanto, se dá em 1832-1833, quando lidera o Exército Pacificador em uma incursão ao Ceará. Labatut assume novamente sua patente para conter as revoltas que se seguiram a abdicação do trono por Pedro I. Sua missão era por fim à rebelião de Joaquim Pinto Madeira, que desejava reconduzir o imperador ao trono. Madeira era parte de uma sociedade secreta, a Colunas do Trono, e achava que sua insurreição levaria a um levante pelo país inteiro. Isso não aconteceu, e apenas na região do Cariri ele conseguiu reunir tropas.
Quando chegou no Ceará, Labatut percebeu que a insurreição era composta por famílias, não por soldados. Ofereceu um termo de rendição a Pinto Madeira, garantindo a segurança dos seus. Tentou ainda mobilizar o governo provisório para que os revoltosos fossem julgados em Pernambuco, e não no próprio Ceará, visto que a sanha por vingança não ofereceria a eles um julgamento justo. Infelizmente, fracassou.
O general foi elogiado por tratar bem os prisioneiros, defender direitos civis e evitar conflitos desnecessários. Em carta, Labatut aponta que viu quase concluída sua missão sem derramar uma só gota de sangue e seu levantar arma alguma. Na mesma carta, reclama que sua tropa estava sem fardamento adequado e sem soldo para o pagamento. Critica diretamente o governo cearense: “Cuidou-se somente em vingar paixões particulares, queimar casas ,legumes e mobílias, assassinar prisioneiros desarmados e roubar!!! Brasileiros contra brasileiros, que desgraça!”.
Numa carta posterior, dá nome aos criminosos de guerra. “O Coronel de milicias Agostinho José Thomaz de Aquino e o Tenente de primeira linha Antônio Cavalcante de Albuquerque cometeram horrorosos atentados contra os direitos civis, vidas e propriedades dos seus concidadãos, sem escapar sexos nem idades”.
O que podemos interpretar disso tudo? Monstro ou herói, Labatut tem ambas as feições – a depender de quem olha. Foi um estrategista militar, mas falhou como líder nas suas relações com subordinados. Foi cruel, massacrando quilombolas que se aliaram ao inimigo, mas foi justo, tentando proteger revoltosos da vingança do estado.
Cronistas, possivelmente, falsearam ou supervalorizaram aspectos de sua biografia. J. Brígido, por exemplo, fala que Labatut era um homem feio, de cara larga e mãos enormes. E defende o argumento esquisito de que feiúra não inspira confiança. “A boa aparência atrai, como uma força centrípeta inicial”. Câmara Cascudo se inspira nesse trecho para propor que estava ali o princípio da monstrificação da figura do aventureiro. Talvez este seja um salto de raciocínio muito exagerado.
Por outro lado, Brígido acena para um outro elemento que não deve ser desconsiderado: o estranhamento que a população cearense teve com a chegada do exército pacificador de Labatut, repleto de soldados negros e pardos. O autor recupera, de Icó, a trovinha: “fecha a porta / lá vem Labatut / com tropa de negros/, parece urubú”. Labatut, vale apontar, é pronunciado com o T mudo.
Ao lembrarmos do registro de Frederico Edelweiss, de que Labatut seria um “negro velho”, juntamente com o medo de tropas que não cometiam horrores como as tropas locais – mas ganharam a fama de monstros incontinenti – vemos como o racismo atravessa fortemente mesmo as nossas relações com o imaginário.
Recentemente tem havido algumas interpretações apressadas de que o mito do boto teria sido inventado para ocultar situações de abuso infantil nas comunidades ribeirinhas. Quanto a isso, é preciso cuidado. É possível que em alguma situação isso realmente tenha acontecido, mas o mito precede suas deturpações – e não o contrário. Se fosse apenas questão de inventar um culpado, por que o boto? Por que justamente o boto?
Veja por exemplo: desde a antiguidade os golfinhos já eram tidos como animais ligados à Afrodite, a deusa do amor. Por quê? E como isso se liga aos nossos botos namoradores? O imaginário constrói esta explicação que une observação da natureza, biologia e imaginação. Os pesquisadores apontam para duas coisas: a primeira é seu corpo comprido, com cabeça arredondada e um respirador bem no topo, de onde ejeta água de maneira sugestiva. A segunda é o movimento que o animal faz, subindo e descendo, lembrando a rítmica sexual.
O professor Jesus Paes Loureiro conta uma narrativa de origem indígena, mas infelizmente não aponta de qual etnia ela pertenceria. Na história, o primeiro boto seria o filho de uma indígena Tapuia* com uma anta. Por isso o órgão sexual do boto é tão viril e utilizado ainda hoje em feitiços e simpatias.
*Tapuia era termo utilizado para se referir a indígenas que não falavam o Tupi antigo. Não se refere a um povo específico.”