Ilustração: Deoxy Diamond
DAMA DO PAÇO
Relatório
O Maracatu é um folguedo que surge no Brasil entre as populações negras, inspirado nas danças e religiões afro, mas também com influência indígena e mesmo católica. Ocorre especialmente durante o carnaval, mas seus ensaios (as sambadas) ocupam as comunidades ao longo de todo o ano.
Seu lastro, como o de uma série de outros folguedos do norte e nordeste brasileiros, tem origem nas coroações do rei e da rainha do Congo, que eram promovidas pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Entendidas como pontos de resistência para o povo negro, as irmandades envolviam-se na compra de alforrias, enterro de negros, ajuda financeira aos necessitados e, claro, nas festas da coroação dos reis do Congo. Com a abolição da escravatura, as irmandades perdem relevância e a festa da coroação deriva em congadas por um lado e em maracatus por outro.
Uma segunda situação importante para compreender o folguedo se deu nas décadas de 1930 e 1940, durante o governo de Agamenon Magalhães em Pernambuco, que exerceu forte perseguição aos cultos afro-brasileiros, levando muitas pessoas de religião para a cadeia e fechando terreiros. Durante esse período, o Maracatu Nação se fortaleceu muito, uma vez que os mestres – que não podiam ter liberdade de culto – ainda conseguiam permissão para brincar o Maracatu, fazendo com que o folguedo fosse uma alternativa necessária para praticar candomblé ou o culto da jurema. É por isso que muitos mestres em Pernambuco consideram que o Maracatu é primeiro culto e depois festa.
Elemento fundamental dos Maracatus é a corte, composta por rei, rainha e seus embaixadores. No entanto, a figura principal mesmo do Maracatu Nação não é a rainha, mas sim a Calunga. “Primeiro ela, depois eu”, diz a rainha Marivalda dos Santos sobre a ordem dos enfeites e dos cuidados. Trata-se de uma boneca mágica, normalmente feita de madeira, mas também podendo ser feita de pano ou mesmo osso. A Calunga é preparada em uma série de rituais de proteção poderosíssimos, feitos pelo sacerdote e permitido apenas a iniciados, e é o coração do grupo. Dizem que brincar o Maracatu atrai muita energia negativa de quem inveja a brincadeira, e que sem a boneca essa energia cairia toda sobre os festeiros. Sem ela, o Maracatu não sai. A boneca é carregada pela Dama do Paço (“Nega da Calunga”, no Ceará), uma figura que sempre sai vestida com as cores do Orixá de quem é filha.
O significado de seu nome é um grande amalgama, dependendo da língua. Kalunga pode ser tanto o nome de um herói mítico quanto o caminho que liga o mundo dos vivos e dos mortos. Em quimbundo, a palavra significa “Mar” ou Águas Profundas, criando uma relação simbólica de ponte com aquilo que está distante, além-mundos. Há quem diga que o totem da boneca representa uma “rainha já morta”, e podemos entender isso como uma relação direta com os ancestrais. Recorrer à força da calunga no Maracatu, essa festa da coroação, é estar sob a égide dos ancestrais a zelar pelo reinado.
Às vezes essa rainha é também distorcida: no Maracatu Leão Coroado, um dos mais antigos do Recife, a Calunga Dona Isabel surge como homenagem à princesa Isabel. Há registros de Calungas que incorporam tanto masculino quanto feminino, sendo ao mesmo tempo reis e rainhas. Talvez isso seja a deixa para entender outro elemento recorrente: a travestização dos personagens.