CARRANCA
Relatório
Se o fumo atrai as visagens, a estratégia popular para afugentá-las é combater fogo contra fogo. Ou seja: contra a feiura do monstro, algo tão feio quanto. As, assim chamadas, figuras-de-proa eram esculturas dispostas à frente das embarcações que navegavam pela região do médio rio São Francisco, com função tanto estética quanto protetiva.
As formas são variadas, mas normalmente trazem uma mistura de humano com cavalo, dragão ou leão. Esse inclusive, era um outro nome pelo qual a peça era conhecida em Juazeiro: “Leão de Barca”. As peças eram pintadas com cores marcantes, principalmente vermelho, azul, preto. Dizia-se que, quando a cabeça de proa gemia três vezes, a embarcação estava condenada a afundar.
Supõe-se que as primeiras barcas a navegarem pelo São Francisco datam do final do século XVIII, movidas a varas e remo, e eram utilizadas tanto para transporte de passageiros quanto para cargas. As carrancas vão sendo incorporadas a elas a partir de 1880 pouco a pouco, por imitação. Pesquisadores, como Paulo Pardal, supõe que vem de uma tentativa de replicar o que se via nos navios estrangeiros.
A era das carrancas foi breve e chega ao seu arremate com a introdução do motor à explosão. Embarcações pesadas como eram as barcaças antigas vão perdendo espaço para as mais leves que tem pouco espaço para adornos como as grandes figuras. Hoje, as carrancas que se encontram em embarcações são meras referências às antigas, mas não ocupam o mesmo papel cultural das suas predecessoras.
Com o avançar do século XX, as carrancas deixam o rio e se tornam peças de chão ou estante; escoradas na entrada das casas para continuar exercendo sua função de deixar o mal bem afastado. Se antes precisavam ser pensadas para resistir às águas, hoje é possível pensar em carrancas feitas de barro. É o caso das famosas peças de Ana Leopoldina Santos, a Ana das Carrancas. Uma de suas marcas registradas eram os olhos das carrancas, sempre vazados: homenagem amorosa que fazia ao seu marido, Zé Vicente, que era cego.
Outra figura bastante conhecida nos dias de hoje é a chamada carranca-vampira, inicialmente batizada de carranca-macaca. Na imagem, o monstro retratado possui dentes brancos pontiagudos bem-marcados, em frente a uma boca muito vermelha. Igualmente vermelha é a linha que contorna os olhos da figura, levemente puxados para cima, denotando sua inspiração oriental.
Sua criação é recente. Data de 1971 quando Severino Borges de Oliveira, o mestre Bitinho, de Petrolina (PE) havia acabado de assistir ao filme japonês “A Fuga de King Kong”, dirigido por Ishiro Honda alguns anos antes, em 1967. Mestre Bitinho nasceu em 1941 no município de Taipu, no Rio Grande do Norte. Artesão desde criança, aos 12 anos já construía de espingardas a bonecos calungas que o pai vendia na feira.
Após viver alguns anos no Ceará e na Bahia chegou em Pernambuco na década de 1970, onde criou a carranca com um tronco de umburana. Graças a sua arte, chegou até mesmo a conhecer o Japão. Um exemplo do diálogo direto entre cultura popular e a cultura pop.
CARRANCA
Tipo: Saberes
Habilidade:
Quando uma de suas cartas for ser enviada para o Beleléu, mande esta no lugar dela. No caso de resultado de Desafios, ela substitui a com menos PVs.
Efeito: Proteção
Citação: "Para afastar bicho feio, só com coisa mais feia ainda!"
Artista: Roberta Cirne
Fontes
– MACIEL, Betania; BRANDÃO, Ricardo Rocha. Carrancas do São Francisco: a dinâmica de uma manifestação folkcomunicacional no contexto do Desenvolvimento Local. Revista Hum@nae, v. 11, n. 1, 2017.
– NEVES, Zanoni. Os remeiros do São Francisco na literatura. Rev. Antropol., v. 46, n. 1, São Paulo, 2003.
– PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
– RODRIGO, Rodolfo. Ana das Carrancas: artista que transformou a tradição em arte completaria 100 anos em 2023. Brasil de Fato. 15 mar. 2023.
– SILVA JUNIOR, Luiz Severino. Carranca Vampira: a vitória da estética mercadológica. IX Encontro de História da Arte EHA: Unicamp, 2013.