Ilustração: André Vazzios
BALEIA ADORMECIDA
Relatório
Dizem que no começo de tudo houve um dilúvio. Talvez seja o mesmo descrito na Bíblia cristã, talvez outro das tantas histórias que circulam mundo afora. De qualquer maneira, diz o povo que depois que as águas baixaram, o mundo já não era mais como antes. E onde antes havia túneis na rocha, passou a correr água. Neste tempo mítico, as águas adentraram a terra, formando um grande mar subterrâneo. E neste mar, habitavam muitas visagens.
A maior e mais imponente delas, com certeza, é a Baleia. As descrições variam muito, mas frequentemente falam de uma imensa baleia azul que, viva desde os tempos do dilúvio, veio dar justamente no mar que corre embaixo das terras do Nordeste brasileiro. Lá, adormeceram, alheios à construção da cidade logo acima. O grande temor dos moradores é que a terra treme ao mero ressonar da visagem. O que aconteceria, então, se o animal místico despertasse em definitivo?
O que impede este destino trágico, assim como nas lendas de Serpentes Adormecidas, é a igreja. Em Icó, no Ceará, a baleia está logo abaixo da igreja do altar-mor do Senhor do Bonfim. O dia que a imagem do Senhor for retirada em definitivo do altar, dizem que a baleia acordará e começará a jorrar água pela cidade. O sertão, assim, vai virar mar.
Em Canguaratema, no Rio Grande do Norte, a baleia está abaixo da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Assim como na outra cidade, a força que segura o monstro é a imagem da padroeira. Para escutar o coração da baleia, basta aproximar a orelha do altar por volta das 18h. Cidades como Cristino Castro e Valença, no Piauí, também trazem a presença da baleia. Nesta última, inclusive, o povo conta uma versão do motivo para o adormecimento do animal: ele teria bebido toda a água do Rio Caatinguinha.
Há quem diga que as lendas foram “criadas” para preservar o patrimônio da igreja. Afinal, em um contexto em que obras sacras poderiam ser roubadas e vendidas, a exigência mágica de que sua presença seria a única coisa capaz de salvar a cidade do desastre seria um desconvite aos criminosos. Isso é insuficiente. Da mesma forma como nas lendas de serpentes e vulcões adormecidos, o que protege a cidade é a fé. O poder divino é representado materialmente no prédio da igreja, o altar, estátuas de santos ou cruzeiros. Mas em última instância, é a fé que protege os humanos do leviatã do submundo.
A presença da baleia na cultura popular brasileira se justifica pela proximidade das populações beira-mar com sua caça e beneficiamento ao longo de boa parte do Brasil colônia. Entre o século XVII e XIX, quando a caça a estes animais era não apenas permitida, mas estimulada, os subprodutos da baleia tinham grande presença no cotidiano dos brasileiros.
A título de exemplo, o óleo de baleia era amplamente utilizado na indústria de energia, servindo de combustível de lamparinas e candeeiras. Era ele o responsável, portanto, pela iluminação tanto nas ruas quanto nas casas. Antes do avanço da produção de petróleo, o óleo também era utilizado como lubrificante dos maquinários nas fábricas. Foi aditivo na fabricação de tintas e reagente no curtume do couro.
Algumas pessoas dizem que as casas e igrejas do Brasil colônia eram feitas, em lugar de argamassa, com uma liga de cal de ostras, resultando em uma liga extremamente forte. Frases como “esse muro não vai cair nunca, foi feito com óleo de baleia” são frequentes nas comunidades costeiras. No entanto, não há registro de que essa tenha sido uma prática real. O óleo de baleia foi utilizado como impermeabilizante, mas não na argamassa. Os ossos do animal, por outro lado, foram presença constante na construção civil.
E quanto à carne? Pelo cheiro forte e sabor desagradável, ela não era consumida pela população tradicionalmente. No entanto, foi por vezes servida como alimento aos negros escravizados – especialmente os que trabalhavam com os baleeiros. Apenas desde 1987, é proibida a caça de baleias, botos e golfinhos no Brasil em razão da Lei 7.643, assinada pelo então presidente José Sarney.