Morte da Matinta

MORTE DA MATINTA

Morte da Matinta, por Stuart Marcelo

Relatório

Uma das histórias mais conhecidas sobre a Matinta-Pereira aborda o momento de sua morte. Nessa versão da narrativa, fala-se de uma bruxa velha que se transforma em Matinta para cumprir um fado; uma maldição gerada por algum comportamento passado. O fado da Matinta se encerra quando ela, velha demais para continuar perambulando pelo mundo, deita-se em seu leito de morte e entoa um lamento tenebroso e repetitivo: “quem quer? Quem quer?”

O que a visagem está oferecendo? Quem quer o quê? É exatamente este o ponto. Dizem que aquela que, escutando o chamado indefinido, responde que sim, recebe como prêmio o fado e se torna a nova Matinta. Uma imagem ligada, ao que parece, à ganância, ao desejo de possuir.

Encontramos ecos muito fortes deste mesmo comportamento nas narrativas coletadas pela professora Maria do Socorro Simões e Christophe Golder. No livro Santarém Conta… (1995) as Matintas não são descritas como velhas, mas sim como mulheres jovens que tinham como peculiaridade o ato de estar sempre luxando. Ou seja, vivendo em ostentação.

Uma das histórias do livro, contada por Francisca Cardoso, fala sobre duas mulheres que eram muito amigas. A amiga mais pobre, de repente, começou a ostentar belas roupas e luxos que anteriormente não dispunha. Com um pouco de inveja, a outra pede que o segredo lhe seja revelado. E a verdade é que, a que luxava, era justamente a Matinta – que usava seus poderes mágicos para conseguir benefícios.

Para revelar o segredo, havia apenas um combinado: a amiga não deveria falar nomes santos em momento algum. A Matinta então se transforma em ave e a leva, voando, para dentro de uma loja com o objetivo de roubar artigos de luxo. A amiga, assustada, gritou: Minha Nossa Senhora! Menina, como foi para gente entrar aqui? Pelo amor de Cristo!”. Pois a Matinta fugiu imediatamente, deixando a outra ser presa.

Percebemos na narrativa coletada uma forte influência europeia no mito, em que dizer o nome de Jesus e Maria afetam a Matinta. O elemento cristão aparece também no relato de Maria de Belém e Oscarina Vasconcelos, no livro de Walcyr Monteiro: “Visagens e assombrações de Belém”. Nele, fala-se de uma armadilha para Matinta que consiste em enterrar uma tesoura virgem aberta em cruz no quintal. No meio desta, colocar uma chave e, por cima, um terço. Bastaria então fazer uma reza que, no outro dia pela manhã, o pássaro-bruxa apareceria preso ao solo.

Câmara Cascudo reproduz, em Geografia dos Mitos Brasileiros, uma carta que recebeu em 1927 do etnólogo Ludwig Schwennhagen. O homem traz um relato que não possui outro lastro, mas é interessante: No interior do Pará e Amazonas, segundo ele, mulheres que fugiam de casa para viver no mato, em casas velhas (taperas) eram chamadas de “tapereiras”. O que as teria feito sair de casa e viver à margem da sociedade? O mundo lendário e concreto se misturam na carta de Ludwig, uma vez que o homem conta que essas mulheres iam de casa em casa, espalhando o medo e exigindo doações para deixarem as casas em paz. Aproveitavam, então, para olhar o movimento das residências e, pela noite, furtar quem lhes havia negado o pedido.

Percebemos neste conjunto de histórias uma mensagem de alerta, prevenindo sobre os riscos de uma vida gananciosa – de querer ter o que não lhe pertence, ou ainda de querer sem saber nem a quê. No entanto, há outra chave de leitura importante para essa versão da narrativa: a relação com o feminino.

Não é qualquer pessoa que assumiria o fado da Matinta, mas as mulheres. Seria então uma história de restrição dos quereres femininos, desestimulando suas ambições? É um caminho, mas não o único. Podem ser todos lastros do pensamento ocidental que se instaura sobre uma narrativa que surge entre os povos indígenas e que vai se transformando muito ao longo dos anos e entre cada contador de histórias. Devemos lembrar que entre povos indígenas existem narrativas distintas sobre esta visagem, que já foi apontada como uma mediadora da relação com o mundo dos mortos.

Variações
A confusão entre Saci Pererê e Matinta Pereira, causada pela origem compartilhada (o pássaro Tapera Naevia) gera variantes curiosas. José Veríssimo, em um artigo publicado em 1883, registra que “Matim-Taperê” é um tapuinho (pequeno indígena), de uma perna só, que não evacua, nem urina, que serve a uma “horrível velha, a quem acompanha as noites de porta em porta a pedir tabaco”.

Outras versões que o mesmo autor colheu fala que o Matim-Taperê é um homem velho, com a cabeça amarrada com um pano ou lenço, como pessoa doente, também a pedir tabaco. Em Manaus, Veríssimo retoma um causo contato pelo velho Paulico, que dizia que Matin-Taperê era um feiticeiro que usa uma flauta. O som do instrumento era o canto do pássaro de mesmo nome, e era graças a ele que conseguia voar. “Referiu-me ter conhecido um tal Júlio que era Matin-Taperê e andava por toda a parte graças a sua flauta”. Seria confusão de Veríssimo ou mesmo variantes ainda imprecisas da relação saci/matinta? Difícil saber.

Outro elemento interessante que Veríssimo coloca em seu texto é uma suposta oração para controlar a velha bruxa: “Matinta-Pereira, Papa-Terra já morreu. Quem lhe governa sou eu.” Para Fernando Alves da Silva Júnior, que estudou histórias de Matinta em Bragança/PA, a relação é com as formas de reconhecimento de quem sofre da sina da visagem. No livro Santos e Visagens, de Eduardo Galvão, por exemplo, conta-se a seguinte história:

“Existem indivíduos que sabem prender a matintaperera sem ficar assombrados. O processo é, ao ouvir-se a matintaperera aproximar-se da porta da casa, recitar uma reza especial e dar uma volta na chave. Na manhã seguinte encontra-se a matintaperera sentada à porta sob sua forma humana. Um de nossos informantes jurou que havia testemunhado uma dessas experiências. A matintaperera aprisionada era uma jovem recém-chegada ao lugar. A cor se sua pele era de um amarelo esverdeado. Foi levada para a delegacia e presa na cadeia”.

Popularmente conhecido como amarelão, a icterícia é um dos sintomas mais evidentes de quem sofre de anemia. Nesses casos, a pessoa fica com a pele bastante amarelada, assim como o branco dos olhos. Como consequência da falta de ferro no sangue, é comum que as pessoas desenvolvam uma perversão no apetite que as leve a comer terra, tijolo, etc.

Assim, pessoas que comem terra e tem pele amarela são frequentemente identificadas como Matinta (ao menos na região estudada por Fernando), o que faz a oração ganhar sentido. “Papa-Terra” é a própria pessoa, acometida da maldição feiticeira.

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