Ilustração: Pedro Leonelli
PELZNICKEL
Relatório
Pelznickel, por vezes chamado também de Belznickel ou, na pronúncia popular, “Pensenickel”, carrega em sua etimologia a origem do seu mito. O Nicolau das Peles, ou “Nicolau Peludo” – como traduzem os que ainda carregam o dialeto badense (de Baden, na Alemanha) – é um mito derivado, sendo sua principal referência São Nicolau. Mas quem teria sido o santo?
Jacopo de Varazze, arcebispo de Gênova e autor de um livro apenas com biografias de santos, no século XIII, narra uma história bastante conveniente sobre São Nicolau. Diz o texto que ele, ainda na juventude, descobriu que um vizinho – nobre, porém falido – se viu obrigado a prostituir suas três filhas virgens para sobreviver. Nicolau então lançou por três vezes um saco de ouro às escondidas na casa do homem para salvar o destino das meninas. Quando foi descoberto, o homem se ajoelhou e beijou-lhe os sapatos, mas Nicolau o fez prometer que nunca contaria a ninguém sobre seus atos. Há aí um princípio narrativo que nos leva à generosidade, ao segredo, ao mistério e aos presentes.
Curiosamente, o ato de presentear os outros durante o Natal tem um desdobramento igualmente cristão. A presença dos três reis magos, que levaram oferendas ao Jesus menino, marca o imaginário popular como um período de dar graças e compartilhar afetos na forma de lembranças. Isso muito antes da festa ser cooptada pelo mercado.
Como chegaremos de São Nicolau ao Pelznickel e ao Papai Noel vermelho que conhecemos hoje? Os caminhos são tortuosos. As narrativas de suas vitórias contra demônios, milagres e especialmente sua generosidade fez com que São Nicolau se tornasse uma figura presente no catolicismo popular na Europa germânica, especialmente em seu dia: 06 de dezembro. No entanto, o personagem era visto como um presenteador severo, que dava benesses mas castigava com seu cajado aqueles que não se mostravam bondosos e merecedores.
Porém, como aponta o historiador Gerry Bowler, isso acaba mudando com a Reforma Protestante de Lutero de 1517. Nela, instaura-se a lógica de que a única forma de conhecer a Deus era a partir de Cristo. Todos os santos, portanto, passam a ser suprimidos e as próprias igrejas passam a desestimular a presença de Nicolau nos festejos do natal. Durante esse período, ele é substituído por uma figura que hoje, em Guabiruba/SC, convive lado a lado com o monstro peludo: é a Christkindl (Menino Jesus). Apesar do nome, este personagem é sempre representado por uma mulher, normalmente loira e com asas de anjo. A Christkindl até hoje é a grande presenteadora do natal.
Escreve Jacob Grimm, em sua “Mitologia Teutônica” de 1835 que, com a ausência do santo e a pureza extrema da Christkindl, outros personagens precisaram ocupar o lugar de castigador – servindo, justamente, como um contraponto para reforçar a bondade do outro. Isso é algo bastante recorrente no catolicismo popular, e no nosso folclore, por exemplo, é comum representar São Pedro como impulsivo, violento e até mesmo capaz de ceder a prazeres sexuais para ressaltar a santidade de seu companheiro de viagens, Jesus. No caso alemão, se os santos estão proibidos, um rescaldo do imaginário pagão passa a caminhar ao lado da Christkindl na forma de espíritos e duendes.
Com a contrarreforma, São Nicolau volta a ser um personagem dos festejos populares do ciclo de natal na Alemanha, mas já ocupando uma outra posição. Paulatinamente, ele próprio vai se tornando um ser folclórico. Grimm conta que, por vezes, fala-se de um duende chamado Nikolas que seria uma derivação do santo. Igualmente comum é fazer com que o santo caminhe com um ajudante capaz de representar seu aspecto castigador: o Knecht Ruprecht – que se torna mais monstruoso com o passar do tempo. O mesmo acontece com austríaco Krampus, que também recebe uma versão brasileira na cidade de Treze Tilias, em Santa Catarina. Entre os castigos mais comuns estava a surra de cajado, a ameaça de levar crianças desobedientes nos sacos, jogá-las na água ou fazer seus olhos se esbugalharem.
Não foi sem surpresa que a partir do século XVIII esse imaginário dos companheiros presenteadores/visitadores monstruosos se converge para uma só figura. Assim surge o Pelznickel, a monstrificação do santo, despido de seu lado religioso. Coberto por peles pesadas, chifres, correntes, chicotes e por vezes até mesmo um black face, as pessoas se fantasiavam de Pelznickel na Alemanha para retomar a dualidade mundana do ser que é capaz de castigar e agraciar, diferente da Menino Jesus que apenas presenteia. Pelznickel, por vezes, dizem que anda sozinho e vai de casa em casa – a convite dos pais – para oferecer os devidos prêmios às crianças de acordo com o modo como se comportaram durante o ano.
Em Guabiruba, dizem os relatos, não havia a presença de Papai Noel na vida da comunidade até meados da década de 1970. A comunidade formada por imigrantes no Vale do Itajaí em meados do século 19 era um bairro de Brusque que se tornou independente em 1962. Bastante autocentrada, a região tinha o Alemão como língua principal o que se provou uma dificuldade quando as relações do Brasil com o país germânico passam a esfriar com a segunda guerra mundial. Os alunos eram proibidos de falar alemão nas escolas a partir da década de 1950. Com a instauração da ditadura militar, a situação se tornou ainda mais grave: quem falava alemão era expulso.
Essas contingências históricas tem impacto direto na vivência cultural. Institucionalmente era possível tentar coibir a influência germânica, mas não na cultura popular. As tradições – dentre elas o pelznickel – permaneceram mesmo com esse ataque direto á identidade. E talvez, muito por isso, que ainda hoje a comunidade abrace com tanta facilidade esse lastro cultural que é o Papai Noel do mato.
O historiador Alisson Sousa Castro desconfia da informação de que o Pelznickel seja uma tradição tão antiga quanto os colonos, como afirmam os brincantes. Ele usa como justificativa o fato de que não há menções ao Pelznickel nos jornais da cidade até a década de 1950. Desconfiamos, todavia, dessa informação. O jornalismo é um espaço especialmente elitista que por muito tempo relegou as tradições populares como algo menor, indigno de suas páginas. Não representar uma brincadeira do povo era, em verdade, o esperado.
Segundo relatos colhidos em Guabiruba, era comum que até os anos 1970 o Pelznickel invadisse as casas – com o consentimento dos pais – e surrasse aqueles que foram mal comportados. “Nem que para isto os puxasse de baixo da cama”. As surras eram dadas, por vezes, com varas de pessegueiro. Com o caminhar da sociedade, as tradições se transformam. Hoje é impensável atrelar os castigos físicos à educação das crianças, mas ainda há um elemento coercitivo. Os pais que levam seus filhos ao Pelznickel durante o natal em Guabiruba gostam do reforço feito para que eles se comportem, estudem, obedeçam. Do contrário, serão castigados ou sequestrados.
No Brasil, o monstro se transforma. Se na Europa era comum que se vestisse com peles pesadas, uma vez que o natal ocorre com o inverno avançado, por aqui suas vestes são compostas por trapos e plantas nativas. No passado, havia imagens de alguns usando black-face também, mas hoje as máscaras tomam todo o corpo. Há uma tradição distinta também na feitura das fantasias: os brincantes da Rua São Pedro as fazem com a planta “barba-de-velho”. Já os da rua Guabiruba do Sul com folhas de gamiova. Muitas vezes a fantasia é complementada por chupetas ou mamadeiras, incentivando as crianças a entrega-las ao monstro para que abandonem o costume.
Com o passar dos anos e os novos fluxos migratórios, a tradição do Pelznickel foi ficando para trás e a do papai Noel vermelho se consolidou na cidade. Até que em 2005 é fundada a Sociedade do Pelznickel, com o objetivo de retomar a tradição. A brincadeira, no entanto, sai do interior das casas e vai para as ruas. Primeiro com desfiles de Pelznickels, depois com a construção de um “parque temático”, a Pelznickelplatz, aonde as pessoas vão para visitar as criaturas, a casa de São Nicolau e os demais personagens. Lá convivem o santo, sua versão monstruosa, a “Menino Jesus” e o Sackmann, o homem do saco, igualmente punitivo.