Ilustração: Fred Rubim
CUCA
Relatório
Dorme, neném,
Que a Cuca vem pegar
Papai foi pra roça,
Mamãe pro cafezal
– Uma das versões da cantiga da Cuca
Um dos personagens mais notórios da tradição oral brasileira, a Cuca é uma criatura que pertence ao âmbito das cantigas populares. Desta forma, assim como no caso do Boi-da-cara-preta, não há registros tradicionais da aparição ou encontro com uma Cuca. “Não há sobre ela episódios nem localizações. Está em toda a parte, mas nunca se disse quem carregou e como o faz”, diz Câmara Cascudo. Sua existência está restrita à cantiga de ninar que embala as crianças pequenas.
Outra observação interessante é quanto a distinção entre a figura da Cuca na cultura popular brasileira e a sua figura midiatizada e presente na cultura pop. Basta olhar para sua cantiga (e mesmo suas variações) que não vemos qualquer menção a uma aparência física.
Para Câmara Cascudo, isso se deve ao fato dela estar ligada ao “ciclo da angústia infantil”. Como é uma narrativa cantada para crianças muito pequenas, a aparência não importa, apenas sua função: sequestrar e devorar. É o mesmo princípio do Bicho Papão. Por isso, não haveria uma forma definida.
Com a intersecção com o imaginário das bruxas, tidas como sequestradoras e devoradoras de criancinhas (vide contos de fada, como João e Maria), a Cuca sem forma acabou tomando forma bruxólica.
Sua imagem se complexifica, no entanto, a partir da influência da obra de Monteiro Lobato. A Cuca aparece como personagem apenas do primeiro livro: “O Saci” (1921). No entanto, a “rainha das coisas feias” – como o autor descreve – ganhou o público, especialmente com as interpretações artísticas que cravaram sua forma de bruxa-jacaré.
Na obra, Lobato a descreve como habitante das profundezas do Capoeirão dos Tucanos. A Cuca dorme apenas uma noite a cada sete anos (o seu grande ponto-fraco) e é capaz de assumir formas diferentes. É assim que se disfarça de velha e transforma Narizinho em pedra. Quanto à aparência física, Lobato diz que era uma bruxa que tinha cara de jacaré e garras nos dedos como os gaviões.
De onde teria vindo a imagem reptílica? Há quem acredite que Lobato criou seu personagem inspirado pelas festas de Corpus Christi na Península Ibérica. Nestes eventos, São Jorge aparece enfrentando um dragão-tartaruga, a Coca, ou Cuca-Fera. O embate relembra a vitória sobre o mal, que sempre deve ser revivida.
Outra referência é quanto a própria palavra, Coca. Dizem que sua raiz é celta, que na Galícia vai dar origem a “crouca” (cabeça), que vai se derivando em Coca e em Coco. Para espantar maus espíritos, era comum que os portugueses usassem abóboras esculpidas com uma vela dentro e a chamassem Coca. Com o tempo, o bicho-papão que assombra as crianças e aguarda em cima do telhado no país lusitano também passou a ser chamado Coca. Em italiano e espanhol, temos o Coco, termo que também indica um papão.
Por fim, uma curiosidade: o coco da bahia recebeu esse nome dos colonizadores justamente por lembrar uma cabeça, Coco, Coca, Cuca. Cabeça, Papão, Réptil. É deste emaranhado de imaginários que tenhamos a nossa Cuca.